Pânico, desespero e canibalismo: o grupo de jovens que sobreviveram a 72 dias de horror

Na década de 1970, a aterrorizante tragédia na Cordilheira dos Andes chocou o mundo, deixando 29 mortos e apenas 16 sobreviventes.

A decolagem da aeronave aconteceu no dia 12 de outubro de 1972, o modelo do avião era um turbo-héliceFairchild da Força Aérea Uruguaia. Estavam a bordo do voo fretado 571, quarenta passageiros e cinco tripulantes que viajavam de Montevidéu, Uruguai, para Santiago, no Chile. 

Imagem tirada pouco antes da decolagem do voo 571, no retrato vemos o time de Rugby Uruguaio que estava presente no voo fretado.

Nas primeiras horas do dia o voo 571 estava seguindo a rota planejada, até que, a noite, o piloto decidiu fazer escala em Mendoza (Argentina) por conta do mal tempo em uma determinada região na Cordilheira dos Andes. Na manhã seguinte, “Sexta-feira 13” do mês de outubro, o avião retomou a rota de viagem com destino ao Aeroporto Internacional Comodoro, em Santiago (Chile). Naquela mesma tarde do dia 13, o avião voava através das montanhas, nesse momento o piloto notificou os controladores aéreos que estava sobre Curicó, Chile, e foi autorizado a descer. Isso viria a ser o erro fatal, visto que a passagem estava encoberta pelas nuvens. Eles erraram ao não levarem em consideração os fortes ventos de proa que em última análise, retardaram o avião aumentando o tempo necessário para o mesmo completar a travessia. Eles não foram tão longe como eles pensavam que iriam. Como resultado, a curva e descida foram iniciadas muito cedo, antes que o avião tivesse passado através das montanhas, levando a um vôo descontrolado contra o solo. A aeronave caiu num pico sem nome (mais tarde batizado como Cerro Seler, também conhecido como Glaciar de las Lágrimas), localizado entre Cerro Sosneado e Tinguiririca Volcán, abrangendo a remota fronteira montanhosa entre o Chile e a Argentina.

O avião acertou um pico a 4,2 mil metros (13,8 mil pés), simplesmente separando a asa direita, que foi jogada para trás com tanta força que cortou o estabilizador vertical, deixando um buraco na parte traseira da fuselagem. A aeronave então acertou um segundo pico, que separou a asa esquerda e deixou o avião com apenas a fuselagem voando pelo ar. Uma das hélices cortou a fuselagem conforme a asa que estava fixada foi separada. A fuselagem bateu no chão e deslizou por uma encosta íngreme da montanha antes de finalmente chegar a descansar num banco de neve.

O avião caiu às 15:32 da tarde, sete passageiros foram ejetados para fora, incluindo o piloto da aeronave, e cinco morreram na manhã seguinte, entre eles o co-piloto. Havia apenas 33 sobreviventes. 

Durante três dias eles sobreviveram em um espaço assustadoramente confinado visto que o avião ficara enterrado sob vários metros de neve. Nando Parrado foi capaz de fazer um buraco no teto da fuselagem com uma vara de metal, proporcionando ventilação. Dentre estes mortos estavam Liliana Methol, esposa do sobrevivente Javier Methol. Ela foi a última passageira mulher a morrer.

   Os sobreviventes não tinham equipamentos, tais como roupas para o frio e calçados de montanhismo adequados para a área, óculos de proteção para se prevenir da cegueira da neve (embora um dos eventuais sobreviventes, de 24 anos de idade, Adolfo “Fito” Strauch, tenha inventado um par de óculos de sol usando os para-sóis da cabine do piloto que ajudou a proteger seus olhos do sol). Mais gravemente, eles não tinham qualquer tipo de material médico, e a morte do Dr. Francisco Nicola afetou muito as condições dos sobreviventes. Para auxiliar no suporte dos sobreviventes, restava apenas um estudante do segundo ano de medicina para improvisar talas e aparelhos com peças recuperadas do que restou da aeronave.

   Foram organizados grupos de buscas de três países na tentativa de localizar a aeronave e os possíveis sobreviventes. No entanto, uma vez que o avião era de cor clara, ele se misturou com a neve, tornando-se praticamente invisível se olhando do céu. A busca inicial foi cancelada oito dias após seu início. 

A essa altura, os sobreviventes do acidente já tinham encontrado um pequeno rádio transmissor no avião, ele não permitia que os mesmos pedissem ajuda, mas em contrapartida, permitia que ouvissem as notícias. No décimo primeiro dia, Roy Harley ouviu a notícia de que as buscas haviam sido canceladas, e então o pânico tomou conta de todos. Gustavo Nicolich saiu então do avião e reparou nos rostos tristes e sem esperanças que estavam voltados para ele e gritou “Ei meninos, há boas notícias! Acabamos de ouvir no rádio. Eles cancelaram as buscas.” Dentro do avião houve um breve silêncio. “Por que diabos é uma boa notícia?” Paez gritou chorando com raiva de Nicolich. Nicolich disse: “Porque isso significa que vamos sair daqui por conta própria.” A coragem desse menino impediu que o desespero e o caos tomasse conta de todos.

    Os sobreviventes da queda possuiam poucos mantimentos para sua alimentação, possuindo apenas algumas barras de cereais, lanches variados e um garrafão de vinho. Durante os dias que se seguiram dividiram esse alimento em pequenas porções, a fim de não esgotarem sua única fonte de sobrevivência. Mesmo com o estoque rigoroso, os alimentos esgotaram-se rapidamente. Além de tudo, na montanha não havia vegetação ou sinal de vida animal, forçando-os a tomar uma decisão difícil. 

   O grupo sobrevivente, coletivamente, tomou a decisão de comer a carne dos corpos de seus companheiros já mortos. De início, quase todos ficaram relutante diante dessa possibilidade — dado que a maioria eram colegas ou amigos íntimos— mas com o tempo, perceberam que era a única forma de continuarem vivos e todos acabaram cedendo. 

   “Tentamos comer tiras de couro rasgado de peças de bagagem, embora soubéssemos que os produtos químicos com que tinham sido tratados nos fariam mais mal do que bem. Rasgamos almofadas de assento na esperança de encontrar palha, mas encontramos apenas espuma do estofamento não comestível. Uma e outra vez cheguei à mesma conclusão: a menos que comesse as roupas que trazia vestidas, não havia nada além de alumínio, plástico, gelo e rocha.” — relatou um dos sobreviventes.

    Após um tempo naquelas condições, foi decidido que um grupo de expedicionários seria escolhido, sendo-lhes destinadas, então, as maiores porções de alimento, roupas mais quentes, e a dispensa do trabalho manual diário em torno do local do acidente, essencial para a sobrevivência do grupo, para que eles pudessem construir sua força. Embora vários sobreviventes estivessem determinados a estar na equipe de expedição, incluindo Nando Parrado e Roberto Canessa — esse último, estudante de medicina — outros estavam menos dispostos ou inseguros das suas condições de suportar um calvário fisicamente exaustivo. Daqueles dentre os demais passageiros, Turcatti Numa e Antonio Vizintin foram escolhidos para acompanhar Canessa e Parrado. Por insistência de Canessa, os expedicionários esperaram quase sete semanas, para permitir a chegada da primavera, e, com ela, temperaturas mais altas. Inicialmente os expedicionários caminharam para o leste, o trio encontrou então, inesperadamente, a cauda do avião praticamente intacta. Dentro e ao redor da cauda, foram encontradas inúmeras malas pertencentes aos passageiros, contendo cigarros, doces, roupas limpas e até mesmo algumas revistas em quadrinhos. O grupo decidiu acampar lá naquela noite dentro da seção da cauda, e continuar a leste na manhã seguinte. No entanto, na segunda noite da expedição, primeira dormindo ao relento, exposto aos elementos, o grupo quase congelou até a morte. 

No dia 12 de dezembro de 1972, cerca de dois meses depois do acidente, Parrado, Canessa e Vizintín continuaram sua jornada até a montanha. Parrado assumiu a liderança, e muitas vezes teve que ser instado a desacelerar, embora o escasso oxigênio tornasse a situação difícil para todos eles. Ainda era muito frio, mas o saco de dormir lhes permitiu viver durante as noites. No filme Stranded, Canessa chama a primeira noite durante a ascensão, na qual eles tiveram dificuldades para encontrar um lugar para usar o saco de dormir, de “a pior noite de sua vida”. No terceiro dia da caminhada, Parrado chegou ao topo da montanha antes dos outros dois expedicionários. Estiradas perante ele, tanto quanto o olho podia ver, existiam mais montanhas. Na verdade, ele tinha acabado de subir uma das montanhas (tão alta quanto 4,8 mil metros – 15,7 mil pés) que formam a fronteira entre Argentina e Chile, o que significava que eles ainda estavam a dezenas de quilômetros do vale vermelho do Chile. No entanto, após espiar um pequeno “Y” à distância, ele concluiu que uma saída para as montanhas devia estar além, e se recusou a desistir da esperança. Sabendo que a caminhada exigiria mais energia do que eles planejaram originalmente, Parrado e Canessa enviaram Vizintín de volta ao local do acidente, pois os mantimentos já estavam esgotando-se. Já que o retorno foi inteiramente para baixo, ele levou apenas uma hora para voltar à fuselagem usando um trenó improvisado.

   Parrado e Canessa caminharam por mais alguns dias. Foram capazes de realmente chegar ao vale estreito que Parrado tinha visto no topo da montanha, onde encontraram o leito do Rio Azufre. Seguiram o rio e, finalmente, chegaram ao final da linha de neve. Aos poucos, apareceram mais e mais sinais da presença humana, primeiro alguns sinais de camping e finalmente, no nono dia, algumas vacas. Quando descansaram naquela noite — estavam totalmente esgotados — e Canessa parecia incapaz de prosseguir. Quando Parrado estava recolhendo madeira para fazer uma fogueira, Canessa percebeu o que parecia ser um homem em um cavalo do outro lado do rio, e gritou com o Parrado a correr para a margem. No começo parecia que Canessa estava imaginando o homem sobre o cavalo, mas eventualmente eles viram três homens a cavalo. Divididos por um rio, Nando e Canessa tentaram transmitir a sua situação, mas o barulho do rio tornou a comunicação difícil. Um dos cavaleiros, um chileno Huaso chamado Sergio Catalan, gritou: “Amanhã”. Eles sabiam que neste ponto seriam salvos, e se estabeleceram para dormir junto ao rio.

    Em casa, durante o jantar, Sergio Catalan discutiu o que tinha visto com os outros homens que estavam hospedados em um pequeno rancho de verão chamado Los Maitenes. Alguém mencionou que algumas semanas antes, o pai de Carlos Paez, que estava desesperadamente à procura de alguma notícia possível sobre o avião, pediu-lhes informações sobre o acidente dos Andes. No entanto, os homens não podiam imaginar que alguém poderia ainda estar vivo. No dia seguinte Catalan voltou para a margem do rio e levou consigo alguns pães. Lá encontrou os dois homens ainda do outro lado do rio, de joelhos e pedindo ajuda. Catalan jogou os pães, que eles imediatamente comeram, e uma caneta e papel amarrado a uma pedra. Parrado escreveu uma nota falando sobre a queda do avião e pediu ajuda, a nota relatava o seguinte: “Venho de um avião que caiu nas montanhas. Sou uruguaio. Faz dez dias que estamos caminhando. Tenho um amigo ferido aqui. No avião há 14 pessoas feridas. Temos que sair rápido daqui e não sabemos como. Não temos comida. Estamos debilitados. Quando vão nos buscar? Por favor. Não podemos nem caminhar. Onde estamos?” Então, ele amarrou o papel em uma pedra e arremessou-a de volta a Catalan, que o leu e deu aos meninos um sinal de que tinha compreendido tudo.

     Catalan foi capaz de chegar a cavalo na estação de polícia em Puente Negro, onde a notícia foi finalmente enviada para o comando do Exército em San Fernando e depois para Santiago. Enquanto isso, Parrado e Canessa foram resgatados e chegaram a Los Maitenes, onde foram alimentados e deixados em repouso.

    Dias após o resgate, Nando Parrado foi recrutado a voar de volta para a montanha a fim de orientar os helicópteros para o local onde estava o restante dos sobreviventes. A notícia de que pessoas tinham sobrevivido ao acidente de 13 de outubro do voo da Força Aérea Uruguaia 571 também tinha vazado para a imprensa internacional, e uma avalanche de repórteres começou a aparecer ao longo da rota estreita de Puente Negro para Termas del Flaco.

    Todos os sobreviventes foram levados para hospitais em Santiago e tratados para a desidratação, queimaduras, geladuras, ossos quebrados, escoburto e desnutrição. Um mês depois, uma expedição por terra e ar chega ao local do acidente. Os restos mortais dos falecidos foram enterrados em um local a meia milha da aeronave, sem o risco de avalanches. No túmulo foi colocada uma cruz de ferro em homenagem às vítimas. Por isso, escrito no metal, de um lado, você ainda pode ler: “Os irmãos uruguaios ao mundo”, e por outro: “Mais perto, meu Deus, de Ti”.

O que restou da fuselagem foi queimado para impedir curiosos. A quase 4.000m de altura, rodeados e presos na nevada Cordilheira dos Andes, sem comida, sem água, sem roupas apropriadas e suportando temperaturas abaixo dos -30 °C, esses jovens conseguiram sobreviver. A tragédia — que é considerada por algumas pessoas como um milagre — gerou um grande debate mundial em torno da questão do canibalismo.

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